A
filosofia é uma disciplina algo diferente das outras. Em história ou biologia,
por exemplo, trata-se sobretudo de compreender um conjunto de importantes
resultados, e de saber eventualmente raciocinar com base neles. Raramente ou
nunca os estudantes se deparam com problemas em aberto, apesar de haver vários
problemas em aberto nessas disciplinas. Um problema em aberto é um problema que
os especialistas dessa disciplina não sabem resolver — estão a tentar
resolvê-lo agora, tal como no passado tentaram e conseguiram resolver os
problemas que deram origem ao que hoje são os resultados que estudamos nas
escolas e universidades. Porque em filosofia não há resultados consensuais
substanciais para estudar, esta disciplina exige dos estudantes — e dos
professores — uma atitude diferente da que têm relativamente a outras
disciplinas: em filosofia, não é apenas uma questão de compreender as ideias
dos filósofos e de saber explicá-las. Em filosofia, o objetivo é aprender a
discutir as ideias dos filósofos — ou seja, aprender a filosofar, gradualmente.
É como aprender a pintar ou aprender natação. Nos dois casos podemos aprender
muitas teorias sobre pintura e sobre natação, mas o objetivo dessa aprendizagem
é saber pintar um quadro ou saber nadar. Analogamente, é importante compreender
corretamente as ideias dos filósofos, mas o objetivo é saber filosofar e não
apenas saber repetir as ideias dos filósofos.
Isto significa que a filosofia é
uma disciplina muitíssimo criativa; não é apenas uma questão de compreender as
coisas, é uma questão de nos entregarmos à mesmíssima discussão a que os
grandes filósofos do passado e do presente se entregam. Significa que teremos
de apresentar ideias, argumentos, objecções, contraexemplos; teremos de
compreender corretamente os problemas em causa, para podermos avaliar as
diferentes teorias ou teses que procuram resolvê-los. Tudo isto significa que
temos de ter alguns instrumentos críticos, que nos permitam avaliar ideias e
argumentos, teorias e teses. A uma parte desses instrumentos críticos chama-se
lógica, tanto informal como formal. A lógica permite-nos estudar melhor os
argumentos dos filósofos e ajuda-nos a argumentar melhor a favor das nossas
ideias ou contra as ideias que consideramos erradas.
Para nos orientarmos nesta
disciplina, não basta saber que a filosofia trata fundamentalmente de problemas
em aberto. É preciso também ter uma ideia clara do tipo de problemas abordados
pela filosofia. Neste caso, a filosofia é parcialmente semelhante a uma
disciplina que todos conhecemos bem: a matemática. É semelhante à matemática no
sentido em que na matemática, ao contrário da física ou da história, não
tratamos de problemas empíricos; ou seja, não tratamos de problemas que
possamos resolver recorrendo à experiência empírica — à visão, medição, testes
laboratoriais, telescópios, microscópios, etc. Os problemas da matemática
abordam-se recorrendo unicamente ao pensamento, sem auxílio da experiência
empírica. O mesmo acontece na filosofia: os problemas da filosofia abordam-se
recorrendo unicamente a pensamento. Mas há uma diferença fundamental: na
matemática só se abordam problemas que podemos resolver ou pelo menos formular
formalmente, recorrendo aos formalismos da própria matemática. No caso da
filosofia, abordamos problemas que não podem ser resolvidos formalmente,
recorrendo à matemática ou à lógica.
Dito assim, até parece que a
filosofia não tem realmente seja o que for para estudar, porque se excluirmos
os problemas da matemática, que podem ser abordados pelo pensamento apenas, e
os problemas das ciências empíricas, que são resolvidos pela experiência e pela
experimentação, nada parece sobrar para ser seriamente estudado. Mas pensar
isto é um erro — apesar de alguns filósofos, surpreendentemente, terem
precisamente defendido, de modo mais ou menos explícito, que a filosofia era um
enorme disparate, por não ter um método seguro para alcançar resultados, como
as ciências e a matemática. Mas eis a filosofia em ação: se um filósofo nos
disser uma coisa destas sobre a filosofia, nós podemos perguntar-lhe por que
razão haveremos de aceitar que só é legítimo estudar os problemas para os quais
temos métodos decisivos de solução. E agora o filósofo fica em apuros, pois
seja qual for a resposta que der, esta resposta é tipicamente filosófica: será
um argumento, e esse argumento não será empírico nem formal. E assim mostramos
que a filosofia é inevitável, pois mesmo para refutar a filosofia temos de
argumentar filosoficamente: não há argumentos científicos ou matemáticos ou
históricos contra a filosofia.
Assim, os problemas da filosofia
são precisamente os problemas que queremos resolver porque nos preocupam — mas
não sabemos resolvê-los de outra maneira senão pensando tão cuidadosamente
quanto possível sobre eles. Não sabemos resolvê-los matematicamente, nem
empiricamente, nem historicamente. Tudo o que podemos fazer é pensar. Daí que,
num certo sentido, a filosofia seja a arte de pensar.
Por Desidério Murcho
(Universidade Federal de Ouro Preto).
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